Não posso deixar de partilhar contigo uma história verdadeira. Faço-o porque me emocionei, porque não encontrei qualquer registo na net, porque me parece algo digno de memória. Para além da memória das 2 ou 3 testemunhas oculares que ainda vivem, uma das quais em Santarém, de quem a ouvi.
Passa-se em Mondim da Beira, a poucos Km de Lamego, no fim da Segunda Guerra Mundial.
São, aliás, duas histórias, vistas pela mesma pessoa, da janela do seu quarto...
O senhor Zé, ainda um rapaz novo, tinha uma mula, que usava como meio de transporte. Maltratava muito o bicho usando de pauladas, por tudo e por nada... Fazia impressão vê-lo chegar e bater no coitado do animal sem qualquer razão aparente.
Um dia, a mula, que até aí nunca dera provas de irascibilidade ou de ser especialmente teimosa para além da natureza própria deste género de híbridos animais, deve ter achado que era demais!
Abocanhou o senhor Zé pelo músculo do braço e, sem qualquer ruído, enterrou a boca e começou a sugar-lhe o sangue. A quem tentava aproximar-se para acudir ao pobre coitado do senhor Zé, dissudia com um olhar de fúria e ameaças de coices, embora sem nunca se distrair do que estava a fazer.
Ao senhor Zé, deixou-o depois cair, já morto e sem pinga de sangue. Um vizinho foi buscar uma caçadeira e abateu a endemoninhada mula.
Precisamente nesse ano, na quinta do lado, morreu a vaca, ao parir. O agricultor reuniu os filhos para discutir o futuro da bezerrita, sugerindo vendê-la, na feira, pois não havia maneira de a criar. A filha mais nova, Tiotina, avançou e disse ao pai que ficasse descansado, que a criava ela, ao peito. E assim fez...
Se seu pai não era rico nem abastado, era remediado, não faltando nada lá por casa. Sobrava mesmo algum dinheiro ou bens, que o pai repartia pelos irmãos na medida que lhes competia, não pelo seu simples nascimento (como hoje se vê), mas sim pelo trabalho que cada um prestava.
Tudo o que Tiotina ganhava, distribuía pelos pobres e carenciados. Se faltava pão nalgum casebre, já se sabia que a Tiotina era a primeira a saber e lá preparava um cestinho de verga onde colocava alguns géneros de primeira necessidade para acorrer aos aflitos. Viam-na passar sempre a pé, alegre com os seus cestinhos, que chegava a entregar em aldeias bem distantes.
Ao Domingo, preparava umas broas grandes, do tamanho de um pão, feitas de mistura de milho com centeio e outros cereais que conseguia arranjar, que eram uma delícia. Postava-se à porta da igreja e à saída da missa todos os pobres se regalavam e tiravam a barriga de misérias...
A bezerra criou-se tão bem que se transformou numa bela vaca. Tiotina levava-a a passear ao lameiro todos os dias para que pudesse comer sempre erva fresquinha. Tiotina aproveitava todo o seu tempo: no caminho para o lameiro, atava a vaca à cintura, com uma corda, para ficar com as mãos livres para poder ir tricotando meias de lã para os pobres.
Um dia, indo com a vaca para o lameiro pelo silêncio do caminho, ao passar em frente à garagem do senhor Rufino, que consertava os modernos automóveis e carros praça, que então se usavam, o filho ligou um dos carros que estavam a arranjar... A vaca assustou-se de tal maneira que disparou numa correria desabrida, apavorada e levando a pobre da Tiotina de rojo pelos caminhos, de volta a casa, sem que ninguém lograsse travá-la. Ali chegou já muito desfigurada, acabando por partir o pescoço, contra uma pedra que fazia cotovelo.
A morte de Tiotina impressionou muito a aldeia, as pessoas quotizaram-se e ofereceram um magnífico vestido branco, de noiva. A história circulou, em quadras que o povo cantava pelas feiras, último estertor da época de transmissão oral, então sob a rude concorrência da moderna Rádio.
Eis como começava: « De luto Mondim da Beira chora a freguesia inteira por uma infeliz desgraçada que uma vaca conduzia De repente esta fugia e por ela foi arrastada já de rastos pelo chão grita com aflição Acuda-me senhor Rufino de repente este aparece mas a vaca não obedece e assim segue o seu destino (...) »
Muitos anos mais tarde, depois do caixão de madeira se desfazer, o padre proibia as pessoas de irem ao cemitério em certos dias certos. Num desses dias proíbidos, chegou a lá ir o Bispo de Lamego. Depois veio-se a saber a razão de tal secretismo. Desfizera-se a madeira e o vestido, mas lá estava o corpo incorrupto a exalar um odor de santidade. Voltaram a vesti-la, e a operação tem-se repetido...
8 comentários:
O Remo e o Rómulo, versão invertida e feminina! Já não é a loba a amamentar, são os carneirinhos a mamar...
Muito forte. E muito bem estudada, a posição! Genial, o resultado.
Boa, Liliana!
Obrigada pelo comentário 7ze. **
O inverso de Roma é Amor!
:)
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Não posso deixar de partilhar contigo uma história verdadeira. Faço-o porque me emocionei, porque não encontrei qualquer registo na net, porque me parece algo digno de memória. Para além da memória das 2 ou 3 testemunhas oculares que ainda vivem, uma das quais em Santarém, de quem a ouvi.
Passa-se em Mondim da Beira, a poucos Km de Lamego, no fim da Segunda Guerra Mundial.
São, aliás, duas histórias, vistas pela mesma pessoa, da janela do seu quarto...
O senhor Zé, ainda um rapaz novo, tinha uma mula, que usava como meio de transporte. Maltratava muito o bicho usando de pauladas, por tudo e por nada... Fazia impressão vê-lo chegar e bater no coitado do animal sem qualquer razão aparente.
Um dia, a mula, que até aí nunca dera provas de irascibilidade ou de ser especialmente teimosa para além da natureza própria deste género de híbridos animais, deve ter achado que era demais!
Abocanhou o senhor Zé pelo músculo do braço e, sem qualquer ruído, enterrou a boca e começou a sugar-lhe o sangue. A quem tentava aproximar-se para acudir ao pobre coitado do senhor Zé, dissudia com um olhar de fúria e ameaças de coices, embora sem nunca se distrair do que estava a fazer.
Ao senhor Zé, deixou-o depois cair, já morto e sem pinga de sangue. Um vizinho foi buscar uma caçadeira e abateu a endemoninhada mula.
Precisamente nesse ano, na quinta do lado, morreu a vaca, ao parir. O agricultor reuniu os filhos para discutir o futuro da bezerrita, sugerindo vendê-la, na feira, pois não havia maneira de a criar. A filha mais nova, Tiotina, avançou e disse ao pai que ficasse descansado, que a criava ela, ao peito. E assim fez...
Se seu pai não era rico nem abastado, era remediado, não faltando nada lá por casa. Sobrava mesmo algum dinheiro ou bens, que o pai repartia pelos irmãos na medida que lhes competia, não pelo seu simples nascimento (como hoje se vê), mas sim pelo trabalho que cada um prestava.
Tudo o que Tiotina ganhava, distribuía pelos pobres e carenciados. Se faltava pão nalgum casebre, já se sabia que a Tiotina era a primeira a saber e lá preparava um cestinho de verga onde colocava alguns géneros de primeira necessidade para acorrer aos aflitos. Viam-na passar sempre a pé, alegre com os seus cestinhos, que chegava a entregar em aldeias bem distantes.
Ao Domingo, preparava umas broas grandes, do tamanho de um pão, feitas de mistura de milho com centeio e outros cereais que conseguia arranjar, que eram uma delícia. Postava-se à porta da igreja e à saída da missa todos os pobres se regalavam e tiravam a barriga de misérias...
A bezerra criou-se tão bem que se transformou numa bela vaca. Tiotina levava-a a passear ao lameiro todos os dias para que pudesse comer sempre erva fresquinha. Tiotina aproveitava todo o seu tempo: no caminho para o lameiro, atava a vaca à cintura, com uma corda, para ficar com as mãos livres para poder ir tricotando meias de lã para os pobres.
Um dia, indo com a vaca para o lameiro pelo silêncio do caminho, ao passar em frente à garagem do senhor Rufino, que consertava os modernos automóveis e carros praça, que então se usavam, o filho ligou um dos carros que estavam a arranjar... A vaca assustou-se de tal maneira que disparou numa correria desabrida, apavorada e levando a pobre da Tiotina de rojo pelos caminhos, de volta a casa, sem que ninguém lograsse travá-la. Ali chegou já muito desfigurada, acabando por partir o pescoço, contra uma pedra que fazia cotovelo.
A morte de Tiotina impressionou muito a aldeia, as pessoas quotizaram-se e ofereceram um magnífico vestido branco, de noiva. A história circulou, em quadras que o povo cantava pelas feiras, último estertor da época de transmissão oral, então sob a rude concorrência da moderna Rádio.
Eis como começava:
«
De luto Mondim da Beira
chora a freguesia inteira
por uma infeliz desgraçada
que uma vaca conduzia
De repente esta fugia
e por ela foi arrastada
já de rastos pelo chão
grita com aflição
Acuda-me senhor Rufino
de repente este aparece
mas a vaca não obedece
e assim segue o seu destino
(...)
»
Muitos anos mais tarde, depois do caixão de madeira se desfazer, o padre proibia as pessoas de irem ao cemitério em certos dias certos. Num desses dias proíbidos, chegou a lá ir o Bispo de Lamego. Depois veio-se a saber a razão de tal secretismo. Desfizera-se a madeira e o vestido, mas lá estava o corpo incorrupto a exalar um odor de santidade. Voltaram a vesti-la, e a operação tem-se repetido...
Adorei ler as tuas histórias.
Obrigada. :)
Beijinhos!
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O mérito é da realidade, pois é uma história verídica...
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